
É só entrar na estrada e ela vira uma pessoa diferente. Põe "walk away" do Ben Harper para tocar, abre a janela do carro e pensa, com um sorriso indisfarçado: "Estou deixando pra trás aquela outra".
No bagageiro, uma sacola com as roupas que a outra não usa durante a semana - tênis, um jeans surrado, umas camisetas e um biquíni, porque nunca se sabe. Seu Ipod. Sua câmera fotográfica. Um livro ou dois, porque é preciso terminar a leitura que aquela outra começou, mas nunca tem tempo para concluir. Palavras-cruzadas, um vício que ela não conta pra ninguém. Uma garrafa de champanhe, porque lá pode não ter. Ao passar por cada placa de sinalização, mais distante ela está da sua cidade e mais perto de si mesma. Os assuntos durante o trajeto? Os mais bobos, os mais sérios, mas nada discutido com pressa e nem com necessidade de conclusão, a única regra é não deixar de se divertir. Não é todo dia que se sai de férias, mesmo que durem apenas 48 horas de um final de semana. Não são férias de julho, nem férias de verão: são férias da outra.
Pelo espelho retrovisor lateral, ela percebe que está sem batom. Beijos são melhores sem batom e nem vale a pena retocar. Mas claro que ela levou o batom: está indo para um recanto secreto, mas não perdeu o juízo. Deixou na casa da outra o relógio, saltos, esfoliantes, mas o batom e o perfume, isso ela não consegue abandonar. Não tem mais 15 anos.Também não tem 18, nem 20, nem 30. Mas quem é que consegue convencê-la de que não é mais uma garota?
Aquela outra, a que ficou, bem que tenta. Abre a agenda e mostra todos os compromissos marcados. Avisa que a geladeira está vazia. Coloca sobre a mesa todos as contas pra pagar. Abre o site do banco e analisa seu extrato. Traz à tona as encrencas da família. Marca hora no médico. E, cruel, se posiciona na frente de um espelho muito maior do que um retrovisor de carro, e pergunta à queima-roupa: é uma garota que você está enxergando na sua frente? Uma tentativa de aniquilamento, mas felizmente malsucedida.
Ela lembra disso tudo enquanto está na estrada e pensa: a outra tem razão, alguém tem que trabalhar, pagar as contas, cumprir a agenda, dar ordens, receber ordens, ser responsável. Mas não todo dia, não toda a vida. Aquela lá, a que ficou, é uma mulher confiável, é uma mulher de olho no relógio e no calendário, uma mulher cumpridora do que esperam dela. Mas ela não pode estar no controle o tempo todo, ela tem que permitir que eu escape dessa organização de vez em quando, que eu busque a alegria sem hora marcada e o descomprometimento total, que eu fique à toa desde a hora de acordar até a hora de dormir, um dia inteiro, dois dias inteiros. Ela tem que aceitar e até mesmo incentivar que eu pegue essa estrada e a deixe de lado, que eu faça isso sem culpa, que eu faça isso por ela.
Eu, a garota dentro dela.
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