21 dezembro, 2010



Minha avó, no primeiro dia de janeiro, a primeira coisa que dizia ao café da manhã era: “Ano novo, vida nova...” Isso acontecia todo ano. Mas a vida continuava do jeito como sempre fora. Parece que o costume, o hábito e a inércia são mais fortes que as boas intenções. Acontece também comigo e já há algumas semanas tenho estado pensando nas mudanças que desejo fazer na minha vida no ano que vem.
O meu primeiro desejo, eu o anuncio já há alguns anos. Ainda não consegui realizá-lo. Trata-se de assassinato. Não, não quero matar literalmente ninguém. Eu só gostaria de deletar algumas pessoas com a simples pressão da tecla do meu computador. Assassinato limpo, sem deixar vestígios... Álvaro de Campos observou que há pessoas que pesam mais durando que deixando de durar. Se elas deixassem de
durar, o mundo ficaria mais leve. Divirta-se: faça sua própria lista de pessoas a serem deletadas...
Pois eu queria matar uma que mora nesse albergue que é meu corpo. Nele moram muitas versões de mim mesma. Gosto de umas. Não simpatizo muito com outras. Mas há uma versão que me horroriza: a torturadora. Essa me põe no pau-de-arara e não me tira
de lá. O pau-de-arara se chama consciência. E a voz da danada é tão mansinha, ninguém ouve, só eu. É o tal superego que me diz sem parar: “É preciso produzir, há muita coisa para ser feita, você elogia a ócio, mas isso é só para os outros”. O meu superego põe sempre diante de mim a lista das coisas que precisam ser feitas, ninguém me impõe essa lista, fui eu mesma que a fez. Mas eu gostaria tanto de vadiar! “Ah! A frescura na face de não cumprir um dever...” Será que Álvaro de Campos era assim mesmo? Acho mesmo é que ele era um fingidor, fingindo completamente.
Eu queria só um pouquinho da doce e inofensiva irresponsabilidade, faltar a compromissos, não responder e-mails e cartas, chegar atrasada com uma consciência sonolenta...
Depois eu gostaria de separar mais tempo para ler. Eu leio menos, muito menos do que gostaria. Gostaria, por exemplo, de dizer alto, pelo menos uma vez por semana os 33 nomes de Deus, segundo Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano. O Deus dela é igualzinho ao meu.
Vão aí alguns dos seus nomes: “mar da manhã”, “barulho da fonte nos rochedos sobre as paredes de pedra”, “vento de mar, à noite, numa ilha”, “abelha”, “vôo triangular dos cisnes”, “cabritinho novo, ovelhinha, carneirinho...”, “mugido manso da vaca, mugido selvagem do touro”, “fogo vermelho no fogão”, “olhos e aquilo que eles vêem”... É só ver o que os nomes dizem para a alma se encher de alegria. Como é
fácil e bonito acreditar nesse Deus cheio de poesia, sem vinganças, sem milagres, nem infernos... Deus mora nos nomes.
Quero ler jornal cada vez menos. Não sei o que fazer com as notícias. Elas entram dentro de mim como uma mistura de fezes e sangue que me provoca vômitos. Não agüento mais ler as declarações dos políticos. Não se pode acreditar em nada do que dizem, em suas caras. Nem um pingo de amor à verdade. Acho que os jornais deveriam
ser assim : um caderno em papel lilás perfumado, com coisas boas (tirinhas do Calvin, indispensáveis!) e outro caderno cinzento, fedorento, com as notícias de corrupções, guerras, terremotos e torcidas de futebol. A estupidez da violência em nome do esporte, da religião, é pior do que um terremoto.
Porque um terremoto é uma reação involuntária da natureza, e a estupidez violenta das massas é uma ejaculação do há dentro da alma.
Os nomes de Deus da Marguerite me fazem doce. As notícias me amargam. Isso eu não quero: amargar. Qualquer pessoa assim estraga a viagem. Jeitos de não ficar amargo: ter um bichinho, ouvir a sonata "Appassionata" de Beethoven, contemplar um crepúsculo, tomar um banho quente de chuveiro, parar para ouvir a chuva, lembrar-se dos amigos queridos. Não dá para se ter um milhão de amigos. Roberto endoideceu.
Amigos, só no varejo. Amigos exigem tempo e silêncios.
E espero caminhar sempre pelos caminhos que eu escolher. Não por saúde, mas por prazer... Os que caminham só por saúde miram o chão e medem as batidas do coração.
Eu caminho para levar os meus sentidos a passear. Os sentidos são as janelas do prazer. Quero também nesse novo ano mais sombra de árvores. As árvores, pelo que sei, não fazem promessas de ano novo porque elas fazem sempre, todo dia, aquilo que está certo ...

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